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‘Adoção do IVA dual no Canadá e na Índia foi positiva para as pequenas empresas’

Especialista em IVA, a consultora do BID Melina Rocha participou da elaboração do texto original da reforma tributária. Em entrevista ao DC, ela aborda pontos do modelo que têm gerado grandes preocupações na classe empresarial

A consultora do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) Melina Rocha é uma especialista em IVA. Na Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária, a tributarista deu apoio técnico à equipe de Bernard Appy na redação da Emenda Constitucional 132, que abriu caminho para a reforma tributária sobre o consumo, e dos textos de regulamentação em análise no Congresso Nacional, com o intuito de alinhar as normas brasileiras com os modelos internacionais de IVA dual já adotados em países como Índia e Canadá.

Em entrevista ao Diário do Comércio, a consultora aborda os impactos desse modelo de tributação nas empresas canadenses, que lidam com ele desde a década de 1990, explica as razões para o longo prazo de transição no Brasil e de como o modelo brasileiro avançou na questão da garantia da não cumulatividade. Confira:

Diário do Comércio - A adoção do IVA Dual no Canadá e na Índia impactou de forma negativa os pequenos negócios? Ou esses países não tinham legislação com tratamento diferenciado para as empresas menores, como ocorre no Brasil?

Melina Rocha - Tanto no Canadá como na Índia a introdução do IVA Dual impactou positivamente grandes e pequenas empresas. Há diversos estudos mostrando que o IVA foi muito positivo para a economia em geral, colocando em xeque os medos levantados no debate brasileiro. Ao contrário, esse modelo de tributação levou a um resultado econômico muito bom para todos, principalmente em relação a não cumulatividade, que é muito positiva para todos os setores da economia e contribuintes, pois desonera as empresas da CBS e do IBS, que devem incidir sobre o consumidor final. Acho que a grande contribuição do IVA em todos os países em que ele foi implementado é a de eliminar a cumulatividade na cadeia, desonerar as empresas na cadeia por conta da não cumulatividade plena de modo a só tributar o consumo, como dever ser um tributo sobre o consumo, como o IVA.

Há, no Canadá, um tratamento diferenciado para empresas menores, com faturamento anual de até 30 mil dólares canadenses (cerca de R$ 124 mil), que é um valor muito menor quando comparado ao adotado no Brasil no Simples Nacional. Lá, pequenas empresas com esse nível de faturamento podem optar ou não pelo regime regular do IVA. Mesmo não sendo obrigadas, muitas empresas escolhem se inscrever no regime regular, pois terão direito a tomar crédito, são desoneradas e, com isso, elas pagam menos tributos pois têm direito ao crédito total sobre todos os insumos. Então, não é verdade que as pequenas empresas serão prejudicadas com a reforma tributária e não se trata de algo que tenha respaldo na experiência internacional.

Entidades empresariais se mobilizam para modificar o texto no Senado a fim de manter a competitividade das pequenas empresas do Simples Nacional. Um dos pleitos é manter o repasse de créditos da CBS aos moldes do que ocorre hoje com PIS/Cofins, a uma alíquota de 9,25%. Há solução para minimizar os impactos para essas empresas?

A emenda constitucional é clara: há somente duas soluções para as empresas do Simples. Uma delas é a empresa permanecer no regime para todos os tributos. Assim o ICMS e o ISS serão substituídos dentro da tabela do Simples pelo IBS e a CBS. Nesse caso, ela vai passar o crédito para o adquirente pela tabela do Simples. Ou seja, o adquirente vai ter crédito correspondente às alíquotas da tabela. E a empresa, por estar nesse regime simplificado, não vai poder tomar crédito, pois foi uma opção permanecer nesse regime.

A outra opção é o contribuinte escolher sair do Simples, no que tange ao IBS e CBS. Então, é possível permanecer no regime em relação aos demais tributos (IRPJ e contribuição patronal) e apurar a CBS e IBS pelo regime regular. Nesse caso, a Constituição permite a tomada e o repasse de crédito conforme a alíquota do regime regular para o seu adquirente.

Essa discussão sobre a tomada de créditos por empresas do Simples já foi decidida, atualmente no âmbito do ICMS, pelo STF. O Supremo entendeu que não cabe à empresa do Simples tomar crédito porque é um regime tributário simplificado opcional do contribuinte. Não há como ter o melhor nos dois mundos, que é ter um regime mais benéfico como o Simples e, ainda, com a possibilidade de tomar crédito. Isso não tem sustentação financeira, econômica e muito menos técnica.

A opção intermediária sugerida por algumas entidades de classe não tem respaldo constitucional. Não é possível o PLP 68 colocar esse tipo de previsão, pois, reforço, na EC 132 só dá duas opções: ficar no Simples sem crédito ou entrar no regime regular, com crédito. Além de ser inconstitucional, tecnicamente, não faz o menor sentido a empresa repassar crédito pela alíquota cheia, sendo que o crédito é o tributo que foi recolhido e pago. Então, estaria se dando um crédito presumido de um tributo que não foi pago, o que tecnicamente não faz o menor sentido, nem o adquirente ter o crédito cheio e, muito menos, a empresa do Simples ter qualquer tipo de crédito e permanecer no regime simplificado.

O longo prazo de transição para o novo sistema tributário sobre o consumo é um dos principais pontos criticados na regulamentação da reforma. Qual a importância, na sua opinião, desse período de adaptação ao novo modelo?

O período de transição foi criado por vários motivos. Primeiro porque as empresas precisam adaptar os seus sistemas para começar a recolher o IBS e a CBS. As grandes empresas, principalmente, precisam atualizar ou contratar novos provedores para que possam corretamente recolher os tributos. Da mesma forma, a administração tributária, principalmente com a adoção do split payment, precisa criar um sistema de arrecadação de pagamento simplificado, automatizado.

A segunda razão envolve a questão da alíquota. Com o caos do sistema tributário atual, não há como calcular exatamente a alíquota que precisa ser estabelecida para manter a arrecadação dos atuais tributos em proporção do PIB. A emenda constitucional 132 determinou que alíquota de referência é aquela que será suficiente para arrecadar o que se arrecada hoje com os atuais tributos na proporção do PIB de forma a manter a carga tributária. Por isso que é muito importante esse período de transição, principalmente para calibrar a alíquota para que não haja um aumento de carga tributária para as empresas e consumidores. Somente com o modelo implementado e rodando será possível fazer esse cálculo da alíquota de referência.

O período de transição também é necessário pelo contexto da guerra fiscal do ICMS, em que diversos estados concederam um benefício para atrair investimentos e empresas em seu território e, com isso, as empresas fizeram investimentos grandes nesses estados. Se o ICMS desaparecer da noite para o dia, sem um período de transição, haverá uma perda grande e prejuízos para essas empresas. Então, é preciso levar em conta esses investimentos feitos no atual sistema tributário num contexto de guerra fiscal.

De que forma a reforma tributária vai garantir a não cumulatividade plena do IBS e da CBS? Nesse ponto, há diferença no modelo tributário sobre o consumo canadense?

O texto da emenda constitucional no Brasil foi mais amplo do que a legislação que trata da não cumulatividade em outros países, em que o crédito do imposto sempre está vinculado a uma saída tributada por parte do contribuinte, a uma atividade econômica, comercial ou empresarial. Então, há sempre um vínculo entre o crédito, a possibilidade de tomada do crédito e a atividade tributada, as saídas e operações por conta do contribuinte.

No texto da emenda constitucional 132, a não cumulatividade é mais ampla porque não há esse requisito inicial para tomada de crédito. A emenda diz que o contribuinte terá direito a crédito sobre todas as aquisições em que incidiram o IBS e a CBS, com exceção aos bens de uso e consumo pessoal. Então, a única limitação que se fez foi uma limitação pela negativa, que é a questão dos bens e serviços de consumo pessoal.

No Canadá, por exemplo, a regra é: o contribuinte só vai poder tomar crédito se adquirir os insumos, despesas de bens e serviços para a sua atividade comercial. Ou seja, há um critério para tomada de crédito, que não foi colocado na emenda constitucional brasileira.

Estados e municípios permanecem com autonomia para alterar a alíquota do IBS. Vê risco de aumento da carga tributária, embora uma das premissas da reforma seja a neutralidade?

Para preservar a autonomia federativa os estados e municípios podem aumentar ou diminuir a alíquota de referência por meio de lei ordinária própria. Mas é preciso que essa lei seja aprovada e há um custo político para isso. É uma liberdade e autonomia para preservar o pacto federativo constitucional. Hoje, eles já podem reduzir ou aumentar as alíquotas de ICMS e ISS a qualquer momento. Então, essa prerrogativa foi mantida.

Como as receitas deles vão estar garantidas conforme os padrões de arrecadação atual, ou seja, com base no padrão na origem, durante o período de transição, que vai até 2077, Estados e municípios não terão uma mudança drástica de redução de arrecadação. Então, acredito que não haverá incentivos para aumentar a alíquota. Isso tem um custo político e, portanto, acredito que a tendência será manter a alíquota de referência.

Qual a sua avaliação sobre a regulamentação da primeira etapa da reforma tributária sobre o consumo, aprovada pela Câmara e em andamento no Senado? Acha que houve muitas mudanças que, digamos, desconfiguraram a proposta original?

As mudanças feitas pela Câmara no texto fazem parte da discussão política, do papel do Congresso Nacional de inserir demandas setoriais que podem ser tecnicamente pertinentes ou não. Mas não houve nenhum tipo de desconfiguração da proposta original. Ao contrário, acho que a Câmara dos Deputados manteve os principais pilares da reforma tributária e ainda aprimorou muita coisa do texto submetido pelo governo federal. Melhorou, por exemplo, a redação que trata do split payment de forma a dar mais segurança jurídica para as empresas e os contribuintes. Houve aprimoramento do texto em muitos pontos e algumas demandas setoriais que foram incluídas como, por exemplo, a desoneração das carnes, fazem parte do jogo político, da democracia e é o papel da Câmara decidir ou não pela inserção das demandas setoriais.